abril 26, 2008

O Salazar tinha botões nas calças


Ontem passou, na RTP, o melhor programa que me foi dado ver nos últimos anos: ‘Vozes de Abril’. Pelo palco do Coliseu dos Recreios (creio), passaram todos os ‘cantautores’, essa turba que, pelo que vi, fez sozinha o 25 de Abril. A tese é simples: Marcello Caetano não terá sido derrubado pela exaustão inexorável do regime e um mundo em mudança (as ‘forças da História’, como os ‘cantautores’ gostam de dizer), mas por José Mário Branco e Manuel Freire. Todos sabemos a cantiga: um monte de velhos compositores e cantores que ‘cantam Abril’, ano após ano, como se o 25 de Abril tivesse sido uma festa de aniversário, para a qual mais ninguém foi convidado. Mas este ano o revisionismo dos ditos atingiu um ponto áureo: toda a gente que sabia tocar três acordes de guitarra em 1974 foi, ao que garantiram, um ‘cantor de intervenção’. Incluindo Fernando Tordo, Carlos Mendes, Carlos do Carmo e, pasme-se, Raul Solnado, que teve a decência de declinar o convite para a orgia de dementes. Maria do Amparo, uma mulher que não cantava há 30 anos (e, pelo que vi, ainda bem) apareceu a cantar, com a sua filha (a inefável Lúcia Moniz), uma ‘cantiga de amigo’ sobre o ‘amado que partiu’ ou coisa que o valha. No princípio, não entendi a razão da Maria do Amparo ser uma Catarina Eufémia dos acordes. Apenas no fim, entendi: o amado partiu para a guerra. Para a guerra do Ultramar, entenda-se, não para o Vietnam. Antes da heroína Maria do Amparo tinha aparecido um brasileiro a ler um poema de sua autoria, em que contava como, lá pelas décadas de 60, tinha sido raptado pela CIA. E, pelo meio, actores de segunda categoria liam textos de um tal Hélder Costa, apresentando figuras que se assumiam fascistas e salazaristas, elogiando cinicamente o 25 de Abril que lhes proporcionou o poder, enquanto destruíam simbolicamente um cravo. Até o Carlos Paredes por lá passou, com quatro bailarinos que poderiam ter saído da ‘Operação Triunfo’ a bambolearem-se em estilo Pina Baush ao som de um ‘medley’ (foi apresentado assim pela produção) dos seus temas, porque apesar de nunca ter cantado uma única palavra, o coronel Santos Silva garantiu que os seus acordes emanam Abril e utopia por todos os poros. Na assistência, a turba de sempre delirava, as Helenas Rosetas e afins, com uma pessoa improvável lá pelo meio, Ramalho Eanes, o homem que, com Melo Antunes e Jaime Neves, acabou de vez, em 25 de Novembro de 1975, com a utopia dos ‘cantautores’. Por momentos, pensei que o programa acabasse com uma homenagem ao Cónego Melo, cujas homilias poderiam ser lidas pelo Raul Solnado, o Nicolau Breyner, o Guilherme Leite dos ‘Malucos do Riso’ ou outro qualquer notável anti-fascista, pois, se lerem bem nas entrelinhas, acabariam por encontrar naquelas algum resquísio de anti-fascismo engagé. Só faltou o Badaró, que uma destas noites apanhei na RTP Memória, em idos de 70, a explicar como o ‘chinezinho lipópó’ servia na realidade para acordar o povo da ‘alienação’. Não vi o fim do programa, mas aposto que acabaram, ‘cantautores’ e público, de pé, a cantarem juntos a ‘Grandôla Vila Morena’. Termino, em jeito de homenagem sentida a toda essa geração de heróis, a lembrar esse belo naco de prosa, da autoria de Carlos Mendes, que a respeito de Filipe II, critica causticamente Oliveira Salazar (só pode, porque Carlos Mendes é um ‘cantor de Abril’), com o final mais memorável que conheço sobre o ditador, verdadeira súmula de analise histórica e génio literário:

Foi dono da terra,
Foi senhor do mundo,

Nada lhe faltava,
Filipe segundo.
Tinha oiro e prata,
Pedras nunca vistas,
Safira, topázios,
Rubis, ametistas,
Tinha tudo, tudo
Sem peso nem conta,
Bragas de veludo
Peliças de lontra.
Um homem tão grande
Tem tudo o que quer.
O que ele não tinha
Era um fecho éclair.