"Uma cama do Club Med é um caixão com molas"!
Para pessoas como o Miguel Sousa Tavares, a perspectiva de passar duas semanas num resort assusta tanto como passar duas semanas em casa da Maria Teresa Horta. São aquelas pessoas que não gostam de se chamar “turistas”. São “caminhantes”, “caminhadores”, “passeantes”, o diabo a quatro. Felizmente, pessoas assim são fáceis de topar. Basta conversar cinco minutos com uma. Se nos primeiros dois minutos essa pessoa citar o “Cântico Negro” do José Régio e disser, entre duas baforadas de tabaco sem filtro, Não sei por onde vou, não sei para onde vou; sei que não vou por aí, estão na presença de um caminhante. O caminhante mais culto poderá mesmo citar o ditado espanhol caminero, no hay caminos, hay que caminar, preferencialmente quando estiver a contar a vez que fez o caminho de Santiago sozinho, com uma mochila às costas e uma máquina fotográfica, comendo mais vieiras do que as lontra do Oceanário de Lisboa. Ser apanhado nas teias de um caminhante pode revelar-se uma experiência de Verão semelhante à picada de um peixe-gato, pelo que vou ajudar-vos a identificar os caminhantes, para que possam fugir deles como fugiriam de um funcionário das Finanças. De um modo geral, vocês estão na perigosa presença de um caminhante quando a pessoa que se sentou ao seu lado:
- Tem a tira-colo uma máquina fotográfica Leica manual. Esteja atento
ao pormenor de a máquina ser manual, pois para o caminhante a máquina fotográfica automática ou digital fez mais mal ao mundo do que o Rudolph Hess. E atenção à lente. O pormenor da lente é mais importante do que parece. O verdadeiro caminhante tem uma câmara de não necessita de zoom, porque a lente é tão comprida que se aproxima do objecto mesmo sem recorrer a esse dispositivo. Por isso, se o melga tiver uma lente do tamanho do pénis do John Holmes, diga que vai ao WC e fuja pela janela ou, em caso de emergência, pela sanita.
- Tem sempre no bolso um caderno da famosa marca Moleskine, aqueles pequenos cadernos de apontamentos, com capa de cabedal preta, que todos os grandes caminhantes usaram, desde o Blaise Cendras ao Bruce Chatwin, passando pelo Céline e (como não?...) o Hemingway. Usar um caderno Moleskine diz imediatamente eu acabei e chegar da Patagónia, enquanto um caderno de apontamentos da Verbo Editora diz eu acabei de chagar da estação da Alameda. Quem anda com um Moleskine no bolso pode considerar-se um caminhante profissional, pois tem a veleidade de ser um contador de histórias. Prepare-se portanto para horas e horas de mentiras e exageros que vão fazer a eutanásia paracer-lhe um bom programa para o fim-de-semana.
- Tem sempre tabaco que não lembra ao diabo. O caminhante não fuma Malboro Lights ou SG Gigante. Nem pensar. O caminhante fuma sempre cigarros açorianos ou cabo-verdianos ou o raio que o parta, invariavelmente o último maço de um pacote que comprou na Tax Free Shop de algum aeroporto, vindo de algum país exótico, repleto de doenças transmissíveis por picadas de insectos. Para além disso, o caminhante fuma sempre cigarros sem filtro, pois o filtro simboliza a industrialização e a falta de contacto com as raízes e as tradições humanas. Pelo contrário, o caminhante gosta de estar em contacto directo com todos os aditivos, produtos químicos e petróleo de um cigarro, tal como supostamente fazia o avô. Deve-se evitar esta espécie de pessoa por muitas razões. Para lá de ser um chato, o mais provável é que, algures no meio da história sobre uma tribo perdida da Guiana Francesa, você leve com um pedaço de tabaco na fronha, cuspido pelo caminhante. Se lhe entrar no olho, você pode mesmo cegar. Mas de entre todos os caminhante fumadores de tabaco sem filtro, existe a espécie mais perigosa, o tubarão branco dos caminhantes fumadores de tabaco sem filtro…
- … o caminhante que enrola o próprio tabaco. Para pessoa normais, como eu e vocês, não faz sentido gastar uma pequena fortuna num produto que a médio prazo nos vai matar ou, na melhor das hipóteses, abrir um buraco na garganta e obrigar-nos a falar como o Dark Vader durante o pouco que vai sobrar das nossas meseráveis vidas, para pessoas normais, dizia, não faz sentido comprar um produto assim e ainda por cima ter de manufacturá-lo. o mínimo que se exige de um produto que nos vai matar é que já esteja feito. Seria como fazer para um assassino as balas com a qual nos vai estoirar os miolos. Mas não para o caminhante. Para o caminhante, enrolar o tabaco diz apesar de eu ter uma profissão stressante (como jornalista ou publicitário) não me rendo às leis frenéticas da vida quotidiana e tomo o meu tempo, domando o Tempo como um gaucho argentino doma o seu cavalo selvagem nas verdes pastagens da Patagónia, coloco freios no Tempo e domino-o, fazendo caminhar a meu favor, como uma amante agradecida. Sim, é exactamente isto que está a pensar aquele bêbedo que está sozinho numa mesa do Estádio, no Bairro Alto. Ele não é um falhado. Ele é um caminhante. Tenham cuidado, amigos.
- Tem muitos bolsos. O caminhante tem tantos bolsos como um gay tem discos da Madonna. Supostamente traz nos bolsos tudo o que necessita para sobreviver em ambientes inóspitos, como a Amazónia ou a Cova da Moura. Os bolsos poderão estar repartidos pela camisa (2), as calças de khaki (6) e colete de repórter de guerra (12). Na realidade, os bolsos têm apenas o papel vegetal com que vieram da loja da Malboro Classics das Amoreiras, para não perderem a forma. Apenas três bolsos têm de facto algum objecto, a saber, um maço de tabaco semfilto e respectiva caixa de fósforos (nunca, mas nunca um isqueiro de plástico), o caderno Moleskine e…
- … o canivete suiço. O objecto que mais simboliza o caminhante. Quem não marca as suas férias pela Halcon e vai de avião para Maiorca, precisa de um canivere suiço para fazer frente a todos os perigos que o esperam no Terceiro-Mundo, desde guerrilheiros independentistas a piranhas. Na realidade, o canivere apenas serve para abrir Sagres de 33 cl, mas a maior utilidade dele, para o caminhante, é a extraordinária quantidade de mentiras que saem quando se abre. Se a pessoa que estiver ao vosso lado colocar em cima da mesa um Victorinox, agarrem a porra do canivete, abrem o garfo (se o conseguirem encontrar) e arranquem-lhe o olho, como fariam a uma cabeça de garoupa, aproveitando a manobra de diversão para se escapulirem.
- Tem roupa militarista. O caminhante usa estas roupas porque são mais práticas para andar na selva, ainda que o caminhante passe a vida a fazer o trajecto Estoril-Lisboa. O caminhante gosta de usar roupas de cores pastel, como botas Timberland, calças Malboro Classics, camisas Camel e colete de repórter de guerra Banana Republic. Para além disso, todos os acessórios de um caminhante são de cabedal, desde o cinto à carteira, passando pelo porta-chaves e o isqueiro Zippo forrado a cabedal. Por cada caminhante, em média, é necessário esfolar duas vacas. Durante o seu percurso natural de vida, um caminhante é responsável pela morte de mais bovinos do que o Pedrito de Portugal. Mas existem roupas mais perigosas do que outras…
- … pois de todos os itens de roupa que marcam o caminhante, existem dois que assinalam a sua presença como o colete-reflector oferecido pelo “24 Horas” assinala a presença dos transeuntes. O primeiro é a t-shirt do Hard Rock Café. Sim, caros amigos. Enquanto o bimbo, o turista de excursão (que o caminhante odeia mais os membros do gang que lhe violassem a mulher) usa t-shirts do Hard Rock Café New York, do Hard Rock Café Paris ou do Hard Rock Café London, o caminhante usa t-shirts do Hard Rock Café Beirute ou do Hard Rock Café Rabat, para bater o turista no seu próprio terreno e mais claramente mostrar a diferença abismal que os separa. A t-shirt Hard Rock Café Bagdad tem, claro, um sub-extrato irónico, como quem diz sim, eu sei que usar t-shirts do Hard Rock Café é coisa para bimbos que se casam em Las Vegas, mas é precisamente por isso que eu estou a usar essa t-shirt, para provar que sou irónico e kisch, ao mesmo tempo que mostro que sou um caminhante que sai do trilho de carneiros para se aventurar pelas moitas. Porém, de todas as peças de roupa que caracterizam e assinalam o caminhante, existe uma de entre todas de que devem fugir como o diabo da cruz – a t-shirt do Peter Café Sport, vulgo Peter’s. Se ao vosso lado se sentar uma pessoa com uma t-shirt com um cachalote e os dizeres Peter Café Sport, dentro de um nó de marinheiro, preparem-se para o ouvir falar, durante horas, sobre o melhor gin tónito do oceano Atlântico, que apenas o senhor José Azevedo sabe fazer, sobre a tradição do scrimshaw e da hipocricia que foi proibir a pesca de meia-dúzia de baleias nos Açores quando países como o Japão continuam a manter a sua pesca industrial, usando arpões explosivos, blá, blá, blá, blá, blá. De todos os caminhantes que que podem encontrar na vossa vida, o caminhante que tem a mania que é um lobo do mar é o mais perigoso e pode levá-lo, qual Virgílio conduzindo Dante pelos nove círculos do Inferno, à mais excruciante noite da sua vida. Não se admire se acabar, com o bar completamente vazio, exceptuando um barfly que está a dormir num canto do balcão, a ouvir o caminhante cantar 99 bottles of beer on the wall, 99 bottles of beer. Take one down, pass it around, 98 bottles of beer on the wall, hay!
Muitos outros conselhos podia dar, mas o maior conselho é o seguinte: marquem sempre as vossas férias num Club Med e converse animadamente com a pessoa que trabalha no departamento de contabilidade da sua empresa e que, como não!, também lá está a torrar ao sol e a beber cocktails efeminados. E não tenha complexos de culpa por não estar a chupar o tutano da vida. Enquanto você está deitado numa espridiçadeira a beber daiquiris e a ouvir as Destiny Child pelos altifalantes da piscina, aquele caminhante que o chateou no English Bar de Cascais, com um pouco de sorte, está a ser devorado por um Dragão de Komodo.
fevereiro 10, 2006
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